terça-feira, 8 de julho de 2008

Manhã de Inverno

A fada, por intermédio da qual alguém satisfaz um desejo, existe para todo o mundo. Só que são poucos os que sabem se lembrar do desejo formulado; por isso, só poucos são os que, mais tarde, na própria vida, reconhecem a satisfação proporcionada. Sei de um desejo que se realizou para mim, mas não quero dizer que tenha sido mais inteligente que os das crianças dos contos da carochinha. Ele tomava forma em mim quando, bem cedo, na manhã de inverno, às seis e meia, a lamparina se aproximava de minha cama, lançando ao teto a sombra de minha babá. Acendia-se o fogão. Como que presa numa gaveta muito pequena, onde mal podia se mexer pela quantidade excessiva de carvão, a chama logo olhava para mim. E, contudo, era um poder enorme que começava a se criar ali, naquela imediação, algo menor do que eu e para o que a empregada tinha de se inclinar mais do que para mim. Quando o fogão já estava abastecido, ela punha uma maçã para assar no forno. Daí a pouco, a grade da portinhola se desenhava no chão como um rubro bruxulear. E era como se, para meu cansaço, aquela imagem lhe tivesse dado o suficiente para o dia. Isso sempre se dava àquela hora; apenas a voz da babá perturbava a prática por meio da qual a manhã de inverno costumava me unir aos objetos em meu quarto. A persiana ainda não fora erguida quando já pela primeira vez eu afastava a tranca da portinhola a fim de seguir o rasto da maçã no forno. Por vezes, ainda mal alterara o seu aroma. Então, aguardava pacientemente o momento em que acreditava sentir o aroma espumante que vinha de uma célula da manhã de inverno, mais profunda e mais recôndita que o próprio perfume da árvore no dia de Natal. Lá estava a fruta escurecida e quente, a maçã que surgia diante de mim como algo familiar e, no entanto, mudado, tal qual um velho conhecido que regressara de longa viagem. Era a viagem através do escuro país do calor do fogão, da qual a maçã havia recolhido o aroma de todas as coisas que o dia pusera à minha disposição. E por isso não estranhava que, ao aquecer as mãos em sua superfície brilhante, sempre me constrangesse a dúvida de mordê-la ou não. Sentia que o fugaz conhecimento que me aportava em seu aroma podia me escapar com toda a facilidade ao passar por minha língua. Conhecimento que, às vezes, me instilava tanta coragem que, no caminho da escola, me servia ainda de consolo. Quando lá chegava, porém, no contato com meu banco, toda aquela fadiga, que parecia ter se dissipado, voltava decuplicada. E com ela o desejo de dormir até dizer basta. Devo tê-lo experimentado milhares de vezes, e, mais tarde, de fato, ele se concretizou. Custou-me, porém, muito tempo para nisto reconhecer que fora sempre vã a esperança que eu nutrira de ter colocação e sustento garantidos.


Walter Benjamin, Infância em Berlim por volta de 1900.

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