segunda-feira, 13 de setembro de 2010

Apontamento

A minha alma partiu-se como um vaso vazio.
Caiu pela escada excessivamente abaixo.
Caiu das mãos da criada descuidada.
Caiu, fez-se em mais pedaços do que havia loiça no vaso.

Asneira? Impossível? Sei lá!
Tenho mais sensações do que tinha quando me sentia eu.
Sou um espalhamento de cacos sobre um capacho por sacudir.

Fiz barulho na queda como um vaso que se partia.
Os deuses que há debruçam-se do parapeito da escada.
E fitam os cacos que a criada deles fez de mim.

Não se zanguem com ela.
São tolerantes com ela.
O que era eu um vaso vazio?

Olham os cacos absurdamente conscientes,
Mas conscientes de si mesmos, não conscientes deles.

Olham e sorriem.
Sorriem tolerantes à criada involuntária.

Alastra a grande escadaria atapetada de estrelas.
Um caco brilha, virado do exterior lustroso, entre os astros.
A minha obra? A minha alma principal? A minha vida?
Um caco.
E os deuses olham-o especialmente, pois não sabem por que ficou ali.


Álvaro de Campos

quinta-feira, 8 de julho de 2010

decifra-me e te devorarei assim mesmo

O amor comeu meu nome, minha identidade, meu retrato. O amor comeu minha certidão de idade, minha genealogia, meu endereço. O amor comeu meus cartões de visita. O amor veio e comeu todos os papéis onde eu escrevera meu nome.

(...)

O amor comeu na estante todos os meus livros de poesia. Comeu em meus livros de prosa as citações em verso. Comeu no dicionário as palavras que poderiam se juntar em versos.

(...)

O amor comeu as frutas postas sobre a mesa. Bebeu a água dos copos e das quartinhas. Comeu o pão de propósito escondido. Bebeu as lágrimas dos olhos que, ninguém o sabia, estavam cheios de água.

O amor voltou para comer os papéis onde irrefletidamente eu tornara a escrever meu nome.

(...)

O amor comeu até os dias ainda não anunciados nas folhinhas. Comeu os minutos de adiantamento de meu relógio, os anos que as linhas de minha mão asseguravam. Comeu o futuro grande atleta, o futuro grande poeta. Comeu as futuras viagens em volta da terra, as futuras estantes em volta da sala.

O amor comeu minha paz e minha guerra. Meu dia e minha noite. Meu inverno e meu verão. Comeu meu silêncio, minha dor de cabeça, meu medo da morte.


João Cabral de Melo Neto

terça-feira, 1 de junho de 2010

esperança

Chega através do dia de névoa alguma coisa do esquecimento,
Vem brandamente com a tarde a oportunidade da perda.
Adormeço sem dormir, ao relento da vida.

É inútil dizer-me que as ações têm conseqüências.
É inútil eu saber que as ações usam conseqüências.
É inútil tudo, é inútil tudo, é inútil tudo.

Através do dia de névoa não chega coisa nenhuma.

Tinha agora vontade
De ir esperar ao comboio da Europa o viajante anunciado,
De ir ao cais ver entrar o navio e ter pena de tudo.

Não vem com a tarde oportunidade nenhuma.


Álvaro de Campos

domingo, 23 de maio de 2010

mestrado



regresso

boemia virtual, aqui me tens de regresso!

desde esse último post do machado de assis, sinto-me um tanto sufocada. acho que, depois de ler esse escrito, a fala poderia acabar, não há mais nada a se dizer que possa ser mais revelador do que "o interno não aguenta tinta". mas insistimos em falar, o homem e suas tagarelices. essa experiência do escrever veio a mim para que eu tenha certeza de que há muito a se mostrar, pouco a se dizer. vejo muitas coisas que não consigo nomear. mas, artista frustrada que sou, não consigo fazer escorrer de mim tantas imagens. e assim permaneço e passo, caleidoscópio repleto de imagens, perdida e muda no devir.

como álvaro de campos, amanhã te direi as palavras, ou depois de amanhã... sim, talvez só depois de amanhã... o porvir... sim, o porvir...

é um belo poema.

domingo, 27 de dezembro de 2009

Pois, senhor, não consegui recompor o que foi nem o que eu fui. Em tudo, se o rosto é igual, a fisionomia é diferente. Se só me faltassem os outros, vá; um homem consola-se mais ou menos das pessoas que perde; mas falto eu mesmo, e esta lacuna é tudo. O que aqui está é, mal comparando, semelhante à pintura que se põe na barba e nos cabelos, e que apenas conserva o hábito externo, como se diz nas autópsias; o interno não aguenta tinta.

Machado de Assis
Dom Casmurro

quinta-feira, 10 de dezembro de 2009

divã

Daniela Jaglenka Terrazzini - ilustradora
[CEMITÉRIO] DE BOLSO

Do lado esquerdo carrego meus mortos.
Por isso caminho um pouco de banda.

Drummond

segunda-feira, 10 de agosto de 2009

A Dor

A Dor - expande o Tempo -
Eras se enrolam dentro da
Circunferência
De um só Cérebro -

A Dor contrai - o Tempo -
Num mero Tiro
Milhões de Eternidades
Cabem num Suspiro -

Emily Dickinson - tradução de Augusto de Campos


A tradução do último verso me incomoda... No original é "Are as they were not". Cabem num Suspiro é muito belo, mas achei diferente demais em sentido.
Enfim.

quarta-feira, 5 de agosto de 2009

Rastros

O post escrito e perdido.
Será o destino? Azar ou sorte? Acaso?

Qual é a razão da efemeridade de um escrito perdido?
Falava de rastros e não deixou mais que um título.